Pescador de araque |
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No domingo posterior entrará em campo e trocará um olhar cúmplice com o capitão de equipa e desatará a correr pela direita e marcará um golo em voo picado
Vamos a ver: se a um jogador fosse lícito participar nos discos pedidos, um médio-ala direito do Varzim podia dedicar o êxito “Você É a Única Mulher da Minha Vida” ao Sporting, ao Benfica, ao Porto e ao Boavista ao mesmo tempo – e na verdade podia amá-los a todos com intensidade e por inteiro. Sei do que falo: como jornalista já amei várias mulheres em simultâneo, e nem quando uma delas me mostrou a fortuna do pai e arrebatou o meu coração me esqueci de deixar às outras uma piscadela de olho comprometida, assim como quem diz que um dia nos reencontraremos. Os futebolistas têm renda de casa – e como eles os jornalistas, os publicitários, os músicos, até mesmo os taxistas, os ajudantes de pedreiro, os assessores de ministro. É assim há muito tempo e sempre assim será, pelo menos enquanto houver dinheiro e por causa dele o emprego e por causa deste a cedência. Em suma: a nenhum futebolista pedirei um dia que tenha outra ambição senão a de ganhar dinheiro, sendo certo que o dinheiro se ganha com golos e com golos se ganha o campeonato. No fundo, andamos todos ao mesmo.
O
que me fascina, quando enfim o médio-ala direito do Varzim assina contrato com
o Benfica e diz: “Sempre sonhei jogar nesse clube”, não são portanto as
palavras em si – é o à-vontade, a sofisticação (até a classe) com que ele
parece dizê-las, mesmo gaguejadas, mesmo ininteligíveis, perante os jornalistas
e os assessores e os empresários que se reúnem na sala de imprensa da Luz para
abanar a cabeça com um ar de: “Agora ninguém pára este Benfica!” No dia
seguinte lá estará ele a treinar com os guardiões do templo, com os
mosqueteiros, com os cavaleiros da Távola Redonda – e no domingo posterior
entrará em campo e trocará um olhar cúmplice com o capitão de equipa e desatará
a correr pela direita e marcará um golo em voo picado e receberá uma ovação dos
sócios de início de época e garantirá um lugar entre os eleitos para a primeira
jornada da liga. E, então, quando pisar o relvado nessa noite gloriosa da
estreia no campeonato, o seu corpo já não será o corpo raquítico e
desconjuntado de um jogador do Varzim, o seu olhar já não será o olhar
reverencial e desconfiado de um médio direito de um clube de terceira linha – e
no momento em que erguer os braços e correr para a bandeirola de canto a
receber aplausos já não terá a mágoa e a ambição de um jogador listado como uma
zebra, mas o à-vontade e a sofisticação (e até a classe) de um deus que veste
de vermelho acetinado.
Fiz-me
entender? A camisola do Varzim torna os jogadores raquíticos e desconjuntados,
e quando eles avançam no terreno é como se a bola os atrapalhasse, como se o
chão fosse irregular, as medidas do campo incertas e traiçoeiras. Falo do
Varzim como podia falar do Alverca, do Gil Vicente, até do União de Leiria – só
falo do Varzim porque tem camisolas iguais às da Juventus, e se a Juventus tem
o ar de uma “velha senhora” o Varzim tem ar de “pescador de araque”. Mas tenho
provas recentes do que digo, todas de jogos de pré-época, todas de jogadores
que podiam perfeitamente ter vindo do Varzim: um livre directo de Ricardo
Fernandes, um remate na passada de Anderson Luís, um chapéu magnífico de
Derlei. Vamos a ver: algum deles marcava golos assim sofisticados quando jogava
listado como uma zebra, pintalgado como um galo de Barcelos, manchado como as
águas do Lis?! Não se está mesmo a ver que que Ricardo sempre sonhou jogar no
Sporting, que Anderson é benfiquista desde pequenino, que Derlei viveu em
banho-maria até chegar ao Porto?
Joel Neto
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