Crónicas Portugal Em Linha

Joel Neto



Luísa

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Às terças-feiras, de quinze em quinze dias, vou buscar as análises à clínica dos Anjos, e então volto com o envelope na mão, sento-me no sofá da sala vazia e imagino que talvez tudo pudesse começar de novo, naquele mesmo instante
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Nos melhores dias a Luísa já está acordada quando eu desperto, mantém o olhar fixo num ponto indefinido e diz-me apenas, como se esperasse o meu despertar para a tarefa mais oca do mundo: "Quero o divórcio." As mulheres são assim: têm a mais absoluta certeza de que podem deixar de amar num rompante - mas quando Luísa fixa aquele ponto indefinido e me suspira simplesmente: "Quero o divórcio", não é o céu que desaba sobre mim, é um mundo inteiro de novas perspectivas que se abre à minha frente, como se o que eu sempre tivesse desejado fosse aquele pedido feito em suspiro: "Quero o divórcio."
Mas esses são os melhores dias. Nos outros acordo simplesmente numa cama imensa, sozinho, e de Luísa não resta sequer o seu calor na almofada ou o cheiro pútrido de saliva nocturna, muito menos aquele beijo doce de quem sabe que para além do cheiro da saliva está ainda a doçura de um beijo matinal, viajando demorado entre os calores disformes dos dois travesseiros. Esses são de facto os piores dias: eu acordo em sobressalto, levo o braço ao outro lado da cama e sinto que ela não está ali, e nessa altura fecho de novo os olhos e forço as frontes em busca de um novo despertar e tento convencer-me de que tudo aquilo não passa de um sonho, de um sonho mau e retorcido - mas apesar de tudo Luísa continua a não estar ali.
Às terças-feiras, de quinze em quinze dias, vou buscar as análises à clínica dos Anjos, e então volto com o envelope na mão, sento-me no sofá da sala vazia e imagino que talvez tudo pudesse começar de novo, que talvez tudo pudesse voltar ao princípio naquele mesmo instante, que eu nunca chegara a abrir um envelope repleto de sentenças de morte e que apenas tinha ido buscar uns exames de rotina e que dali a pouco a Luísa entraria naquela sala e me diria, no seu tom maternal: "Carlos, tens de controlar este colesterol." Mas é mentira: as análises não são de rotina coisa nenhuma, a Luísa já não está ali para me cuidar e, na verdade, quem me dera a mim morrer de colesterol - morrer ali e naquele mesmo momento, afogado em gordura, afogado em prazer e em vício, no mesmo prazer e no mesmo vício por que me deixara devorar por dentro até, enfim, perder a mulher que cuidava de mim.
Às vezes tento controlar o destino, a memória que o próprio destino traz, e por momentos quase consigo acreditar que fora Luísa a própria raiz do vício, que fora ela a prevaricar, que fora ela a trair-me e a trazer para dentro da nossa casa aquela doença terrível - que a mulher que parecia amar-me não me tinha afinal amor nenhum e, bem vistas as coisas, mais não fora do que vítima de si própria, ela e o futuro que insistira em ter, o maldito fruto do seu ventre de viciada, a flor do mal, a morte nata. Mas também isso não é verdade: eu sei quem trouxe a doença para a nossa casa, em que mês e em que dia e em que hora eu abri a jaula à minha própria podridão e a soltei no interior da nossa casa, sorrateira, louca pelo sangue doce de uma mulher inocente, louca pelo sangue imaculado do seu ventre em flor. Eu sei porque é que a Luísa morreu e porque é que, morrendo, levou com ela o fruto do seu ventre - fui eu que a matei, a ela e ao que dela podia ainda restar, não o tivesse eu matado também, no meu vício devorador de condenado. Antes, quando nada passava ainda de medo e de culpa, quando não havia análises nem destino nem desejos de futuro - quando não havia futuro - tudo era mais fácil: reunia-me as sextas-feiras com os amigos do costume, sussurrava-lhes: "Tenho medo" e eles mandavam simplesmente vir mais um copo, como quem diz: "Esquece isso, pá." Às vezes o Francisco olhava-me fundo, olhava-me bem fundo nos olhos e dizia: "Claro que se tu tiveres ela também tem, mas de que é que te serve pensar nisso agora?", e por momentos o medo desaparecia, desaparecia todo, mesmo que a culpa continuasse lá, emboscada a um canto. Mas para o Francisco era diferente, para o Francisco e para o Manuel tudo era absolutamente diferente: nenhum deles tinha mulher, nenhum deles tinha destino, e mesmo que o futuro acabasse na próxima curva da estrada tudo estaria bem, tudo acabava bem porque acabava sem destino e sem futuro, sem análises e sem desejos de futuro, tudo acabava vazio e absolutamente preenchido nesse imenso vazio dos solteiros felizes. E, embora eu fechasse os olhos e empinasse o copo e dissesse a mim próprio: "O que for será, assim como assim ninguém vive para sempre", alguma coisa continuava a roer-me por dentro, o rosto da Luísa virando-se na cama de manhã, os travesseiros fundindo-se num mesmo calor, o rosto dela virando-se na cama e o nosso calor metamorfoseando-se primeiro no cheiro pútrido de saliva da noite e depois apodrecendo numa coisa ainda pior, muito pior - no cheiro do fim de tudo, de todas as coisas, de Luísa e de mim e do nosso destino conjunto: do futuro.
De certa forma, reconheço agora, tudo começava e tudo terminava em Luísa - tudo começava e terminava nela, apesar daquele meu jeito desprendido de quem recusa querendo e aceita rejeitando os impulsos da vida. Era isso que me distinguia de Francisco e Manuel, que me distinguia dos meus amigos solteiros: a vida para eles era só uma, uma vida una e indivisível, e às vezes havia que vivê-la como ela própria o quisesse, ao ritmo dos seus caprichos, como num último recurso de partilha - mas para mim a vida era muito mais do que isso, começava com Luísa e terminava com ela. Depois dela, aliás: a minha vida tinha de acompanhar a vida de Luísa e ser ainda capaz de sobreviver-lhe, se fosse a ela que calhasse a maldição da morte na próxima curva da estrada. Sim, eu era a única forma de ela continuar a viver, a viver por muitos anos, se não fosse eu a viver através dela em caso de infortúnio contrário.
Então veio o envelope e logo depois a doença, aquela doença sem nome e de nome indizível, aquela doença vergonhosa própria dos desviados da carne e dos desvairados do espírito, e dei por mim a sonhar ser traído - ser traído cedo e em estilo, tão cedo e com tanto estilo quanto me fosse possível segurar até lá o segredo do envelope. Eu preferia um cancro, na verdade: um cancro era dela e dela só, um desconserto genético, um azar - e se então houvesse a certeza de que no final estaria o fim de tudo, o fim das análises e dos desejos de futuro e do próprio destino, nenhum de nós teria de olhar para trás: acontecera, pronto. Com o vírus, não: com o vírus havia um culpado, tinha sempre de haver um culpado, e então era importante que a culpada fosse ela, que fosse ela a culpada mesmo que fosse eu a vítima, mesmo que fosse eu a memória, mesmo que fosse eu o pó - e se ela um dia tivesse prevaricado, se ela um dia me houvesse traído, se ao menos uma vez Luísa me tivesse trocado por outro homem, no último fôlego eu seria capaz de acreditar que a culpa era de facto dela e suspiraria eu próprio um pedido derradeiro de divórcio, como quem a liberta: "Sua puta!" Porque só uma coisa era pior do que morrer: deixá-la sozinha, sozinha neste mundo e a viver a minha vida, a carregar a minha memória, a viver a minha vida gorda e viciada com a mesma certeza e a mesma força com que, se fosse ao contrário, eu teria de viver a sua vida bela e pura.
Talvez a culpa seja apenas uma forma incipiente de amor - mas hoje, quando penso em Luísa, sei que senti alguma coisa por ela, mais do que medo, mais do que um sentido estúpido de responsabilidade, talvez mais até do que culpa. Quando posso, repudio também essa memória: afasto da mente o dia em que subi o meu calvário em busca de um envelope maldito, fecho os olhos aos estratagemas com que tentei esconder dela aquela ameaça de morte, apago os momentos em que, ainda antes de abrir o envelope, sonhei com o divórcio e com a oportunidade de virar costas àquilo tudo, ao sofrimento dela e às consultas semanais e às farmácias de serviço e ao banco de urgências - e depois quase consigo esquecer-me do resto: o mês e o dia e a hora em que eu conheci outra mulher e abri a jaula à minha própria podridão, as vezes que falei com Deus apesar de nem acreditar na sua existência, as mil e uma maneiras com que perguntei a Luísa: "Com quantos homens dormiste antes de mim?", na esperança de poder dizer-lhe depois: "Não te esqueças de que, por cada um com que dormiste, dormiste com outros mil."
Mas ela nunca dormiu com mais ninguém, isso sei-o bem - e, enquanto eu divago agora entre consultas semanais e farmácias de serviço e bancos de urgências à espera de nada, à espera de nada mesmo, nem sequer de perdão, a minha sala está vazia e Luísa está morta. Fui eu que a matei, e o meu destino morreu com ela.

Joel Neto
Lisboa
joel.neto@oninet.pt

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