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O esvaziamento da palavra

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                                             O esvaziamento da palavra

 

- Chico!
- Chiii… cooo!
 O polido silêncio da manhã retardada entre lençóis prolonga-se, apenas riscado por este repetido apelo nominal.
 - Fransciscoooo...!
 Uma voz grave enrouquecida pela gosma da ressaca, num palavrear sincopado e indecifrável, acode, por fim, à renitente insistência, mas de uma forma tão ténue que nem deixa perceber, ao certo, se ouviu o chamamento.
- Não tens leite no frigorífico?
 Continua ela, com o propósito de interromper o jejum.
- Já há muitos anos que deixei de ser bebé.
 Responde-lhe ele, continuando o longo processo de acordar e acendendo um cigarro em gesto maquinal.
Às primeiras passas a tosse rasgada desentope-lhe o aparelho de sopro, e às segundas já ele projeta as palavras com clareza.
 - Tens cerveja fresca no compartimento de baixo, abre uma para ti e traz outra para mim. Não fazendo de ti criada.
 Sem resposta falada, ela cumpre à letra e regressa com as mãos refrescadas pelas garrafas, acoplando qualquer coisa de petisco.
 O desalinho do quarto é superior ao do resto do apartamento, onde ainda se nota mão de mulher-a-dias algumas vezes por semana. O mobiliário da casa, minimalista, não está empoeirado, quadros alinhados e limpos, soalho da cozinha a brilhar, sem nódoas; tudo sinais inequívocos de preocupação feminina, atestada pelo bilhetinho manuscrito a lápis em cima da bancada:
senor dotor não esqueça dexar denhero o fim do mês ja foi. Felismina.
 
Um tanto disfarçadas pelo padrão colorido dos lençóis, nódoas mais óbvias há que sobressaem de outras sem cor definida. Pelo escarlate sanguíneo e porque misturadas em odores sexuais, não deixariam qualquer vulgar investigador sair da lógica e fá-lo-iam não duvidar da virgindade da mulher - coisa inacreditável na época do sexo livre, principalmente quando a mulher em causa é uma estampa com trinta e sete anos.
 Aberta uma nesga da janela, imperativo que o ar viciado e azedo da alcova exige, quanto baste para sua renovação e não comprometendo o sigilo da noitada, o rebuliço da rua penetra na realidade do casal, que o não é, social e moralmente falando. Para se ser mais abusado e rigoroso na indiscrição é preciso dizer que ainda há vinte e quatro horas não se conheciam. Há precisamente quinze horas se viram pela primeira vez, ombreando lado a lado, entre milhares de pessoas descontentes com as políticas do país, numa manifestação contra a troika.

 - Filhos da puta! Vão para casa e deixem-nos gritar em paz! Vocês estão no mesmo barco que nós!
 Polícias fazem ouvidos de mercador, treinados para o efeito, não bolem uma palha, como se água lhes circulasse nas veias. Quietos mas nem tanto, mantêm-se os cães, seus pares. Binómios que só evidenciam alguma inquietação ao rebentar dos petardos.
 Dois encapuçados amarrotam e atiram latas de cerveja já bebida, cujo estralejar de encontro às lajes da escadaria faz erguer o cão mais próximo que, nervoso com o pulso do militar, faz intentos de lhe morder.
 - Vai para casa, filho da puta! A tua mulher está lá com o amante, enquanto tu estás aqui a fornicar o povo. Chulo! Cabrão!
 Joana não tem tento na língua e arrisca-se a umas bastonadas. De mochila às costas, encostada às grades, sem mobilidade para qualquer dos lados, pois tem literalmente em cima de si toda a multidão de protestantes, logo que haja um ripostar da polícia de choque será das primeiras a apanhar.
 - Baixa-te um pouquinho. Não te mexas agora. Deixa-me abrir a mochila. Ok. Já cá canta.
 Tiago demora pouquíssimo a acender e arremessar o coquetel molotov. E também não tarda a ser agarrado de trás por várias mãos poderosas que o algemam e levam aos repelões entre a multidão. Os tipos que estavam a seu lado a lançar bocas eram bófias. E outros, mais ao lado, não se sabe o que são, visto que nem esboçam o mínimo gesto de solidariedade para com o capturado. Da porradaria que lhe foi endereçada sobrou alguma para Joana enquanto, em vão, o tentou ajudar a livrar-se dos gorilas. De cara ensanguentada, atordoada pelas bastonadas que lhe calharam, ela vê-o desparecer arrastado, ante a indiferença dos rostos protestantes, ficando com a desconfiança de não estarem todos ali pelo mesmo motivo, a lutar com a garra que faziam parecer, pelos mesmos objetivos.
- Governo para a rua, já! Queremos as nossas vidas de volta!
 Gritam os sindicalizados, empunhando cartazes “Que se lixe a troika” atrás de si, palavras que fazem luz na cabeça de Joana. Ela não quer a mesma vida de volta, ela está ali por uma vida melhor, pois nunca passou da miséria que o trabalho precário de cenógrafa lhe proporcionou toda a sua vida de adulta. Os recibos verdes, que tem de passar para receber irregularmente os parcos euros que lhe sustentam a pobreza, são enleados numa tal teia de obrigações que do pouco vencimento recebido ainda tem de tirar uma parte do pão para boca, para pagar a segurança social - por acaso ali representada ao lado, por pessoas que conhece, algumas delas as mesmas que já a atenderam, com má cara; elas também erguem cartazes “ Que se lixe a troika”.
 Joana não compreende estas leis que a obrigam a cumprir um sistema deficiente, sem garantia de futuro, cujos executores nunca ouviram os lesados sem capacidade de lóbi e só têm em conta os que, mal ou bem, ainda têm emprego certo. Qualquer pessoa a recibo verde é escalpada por este sistema, cego para ver os mais pobres; sistema que é servido pelas mesmas mãos que empunham os cartazes “ Que se lixe a troika” e “Queremos as nossas vidas de volta”.
 A alguns metros das baias, um cartaz exibe a queixa de que são sempre os mesmos a sofrer os cortes, mas Joana sabe que, mesmo depois desses cortes, quem o empunha ainda ganha muito mais que ela, e não tem dificuldade em inferir a discrepância existente entre ela e este, antes de ele ter o vencimento minguando. Os próprios jornalistas dos noticiários aplicam esta mesma frase poderosa de que “são sempre os mesmos a sofrer os cortes” fazendo passar a ideia errada de que são estes os pobres do país. Este tipo de queixoso apenas o é há pouco tempo, enquanto ela sempre o foi. A certeza de que esta gente nunca se importou com os injustiçados de longa data está registada na cabeça dos que nada têm desde há muitos anos. Porém é pena que o poder desta frase seja esvaziado pelo contexto enganoso e pleno de sofismas de quem a usa.

- Bendita crise que veio ressuscitar a luta política – verbaliza ela em surdina.
 Misturados na multidão estão os que empunham um cartaz com décadas de existência e que tem reivindicado, com frase permanente, “ governo para a rua, eleições antecipadas já”. A estes só serve o desgoverno, visto que mal entra um governo novo já eles pedem eleições antecipadas. Deste grupo fazem parte pessoas que Joana conhece, que têm uma boa vida, com ordenado certo, catorze ordenados por ano, férias no estrangeiro e acesso privilegiado à saúde em relação a ela. Razões que a levam a pensar ser esta mostra de descontentamento puro blefe, exemplo óbvio da falta de coerência entre a palavra e os atos. Tanta hipocrisia desfalca e fragiliza a força do verbo.
 Joana percebe não estarem todos os manifestantes a reivindicar o mesmo. As mesmas palavras de ordem, tanto escritas como gritadas, não têm o mesmo significado para toda a gente.
 Os que querem a vida de volta são apenas os que, não se importando com o definhar dos outros cidadãos enteados do sistema, foram mamando na teta do estado até a secarem por muitos anos vindouros. Esta mistura de gente com interesses tão diferentes não pode ter força para mudar o país para o bem.

- Gelada, como eu gosto. Passa-me o paté. Bolacha sem mais nada é sensaborona.
Duas goladas dele deixam a garrafa quase vazia. Ela é vagarosa e contida no beber, preferindo comer mais, substancialmente, aproveitando acepipes a que não tem acesso com regularidade, entremeando conversa com frases assertivas que demonstram lucidez de raciocínio e que terminam quase todas com um preocupado “que horas já são?”.
 - Tenho de ir ver do Tiago. Estou farta de lhe ligar e ele não atende. Os gajos levaram-no e eu tenho de saber para onde.
 - Não te preocupes que ele está bem. Deita-te de novo aqui Mariana, que eles soltam-no perto da hora de almoço, para não terem de lhe dar de comer. É o costume.
 - Joana. Sou Joana. Têm a mesma terminação mas não são a mesma coisa.
 - Além do mais não podes ir-te embora sem que eu te veja bem essa ferida na cabeça. As escoriações do braço não são preocupantes e não passam disso mesmo, arranhões.
 - Não tem problema. Só me dói ao de leve.
- Como estavas desmaiada quando eu te apanhei, o melhor é passares no hospital e radiografares o crânio, para ficares descansada. Eu vou entrar de banco à meia-noite, mas é melhor não esperares por mim.
 - Queres outra? Vou buscar mais comida, estou esfaimada. Estas entradas abriram-me o apetite.
 - Entradas? Se calhar foi da ginástica acrobática.
 Piada acompanhada de risos de macho latino fora de moda.
 Ele prefere acender outro cigarro e fumá-lo como petisco, vê-la comer com desfastio e lembrar-se de quanto era comilão em novo. Agora com menos cabelo e menos apetites valoriza mais a voracidade da juventude bem encabelada, passando-lhe os dedos pela farta juba negra, enquanto ela se sacia com os proventos da casa.
Ao som da digitalizada alta-fidelidade, lambendo os dedos e ultimando a golada derradeira, como quem já não tem nada a perder ela solta a pergunta armazenada na garganta.
 - O que é que tu estavas a fazer na manif? Não te falta nada em casa, tens um carro topo de gama, fazes férias no estrangeiro…
 Interrompendo-a, para que ela não se alargue mais no património, passa-lhe a mão pelos seios.
 - Precisamente por isso, e porque não tenho só um carro, nem só esta casa. Porque não quero diminuir os meus pertences é que eu lá estava. Imagina que só lá estavam as pessoas que querem ver a troika na rua. Esse desiderato seria conseguido e eu não teria o meu vencimento pago, porque sem troika cá a falência do estado é efetivada. E para evitar esse colapso material é que lá estavam certas forças de poder, que têm tantas culpas do estado a que o país chegou quanto os governos que por cá passaram, mas que cobardemente inculcam as culpas nos outros poderes. Ou tu não sabes que quem segura o verdadeiro povo descontente são os guardiões oficiais da esquerda: a esquerda parlamentar e os sindicatos da função pública? Sem estes travões já cá não estava a troika, aliás, nem tinha entrado. Peço desculpa de ser tão cru e direto, mas tenho pena da tua ingenuidade.
 Joana não quer crer no que está a ouvir. Tanto cinismo concentrado não consegue entrar-lhe por junto nos ouvidos.
 - Não brinques com coisas sérias, Chico. Quer dizer que só és sócio do partido para tirares dividendos? Tu e outros do teu gabarito só lá estavam para emperrar o processo? Não me lixes, senhor doutor!
 - Porque é que tu achas que me estafei a tirar o curso de médico, para ganhar o mesmo que tu? Para ter as mesmas regalias que qualquer outro? Com certeza que não!
 Molha de novo a garganta.
 - Melhor ainda, nós nem corremos o risco de ficar desempregados, porque contra essa possibilidade está a ordem prevenida. Nunca alcançaremos o número de médicos necessários para suprir as necessidades do país, garantindo assim o lugar ao sol dos que já cá estão.
 - E eu a pensar que a vossa classe estava prenhe de altruísmo.
 - Estás redondamente enganada, menina. A grande maioria é composta por gente vaidosa e egoísta que sempre ambicionou uma profissão bem remunerada e com estatuto de Deus. Há os que cumprem o primeiro e grande ideal de Hipócrates, mas são uma minoria. E para te provar que também os há bêbados e engatatões estou cá eu, como tu já viste.
 Ela está siderada com tanta desvergonha. É débito demais para um só jorro. E só descomprime após a última intervenção dele quando, desmanchado de riso, pronuncia:
 - Estava a brincar, Joaninh’avoa avoa!
Cabisbaixa há longos minutos, a rabiscar papeis rasgados, ela tenta recompor-se daquele incómodo emocional. Com os dedos pretos de carvão escolhido e retirado dentre as brasas apagadas, esfrega uma folha A4 com pedaços de jornal colados ao acaso, uns de cabeça para baixo e outros nas mais irregulares direções. Diversificando a pressão, ora do indicador ora do polegar, consegue variedade nas marcas que inscreve, cobrindo algumas áreas com degradés controlados. Em parangonas e desalinhada das demais, a palavra democracia sobressai. E, talvez por isso, ela trata de lhe diminuir o protagonismo aplicando-lhe uma boa dose de sombra carbónica. Aperta uma das feridas do braço e deixa propositadamente cair umas pingas de sangue sobre o trabalho de composição. Não ficando satisfeita com a vermelhidão atingida, acaba por entornar uma porção de desinfetante encarnado. Esse, sim, colora e remata a criação artística, que mais pessoal e inédita não poderia ter sido.
 - Toma que eu te ofereço. Ficas com uma obra minha, para recordação da maior manif, jamais acontecida no país.
 - Ó… pá! Muito obrigado.
 Começa por beijá-la como agradecimento, mas prolonga a ação com uma dose de língua extra, a que ela corresponde em duplicado.
- Não consigo perceber estes gatafunhos feitos a caneta, parecem-me palavras mas não as consigo decifrar. Estas letras não são minhas conhecidas. Inventaste-as tu?
- É verdade. Inventei-as de momento. Não querem dizer nada de especial. Aliás, nem pretendem valor semântico.
- Mas uma palavra sem significado não se cumpre.
- Exatamente como grande parte das palavras de hoje em dia, que não têm valor nenhum na nossa cabeça, visto que já não produzem efeito em nós.
 Com a repetida recusa do isqueiro, ele vai à sala procurar lume para acender o cigarro, aproveita as poucas brasas do borralho e reativa a fogueira da clássica chaminé.
- Às vezes gosto de acender o cigarro diretamente das brasas, tem um gosto particular que me faz viajar no tempo e recordar boas passagens.
- Acende um também para mim, pode ser que me traga também boas memórias, já que o presente não é grande coisa.
 Retornado da casa de banho pega mais uma vez no papel trabalhado e profere a sua crítica pessoal.
- A palavra democracia está muito encarvoada e enodoada para o meu gosto. Foi de propósito?
- Claro. A democracia que foi boa para ti, não me deu grande coisa. Mãe para ti e madrasta para mim. Portanto, estás a ver, a mesma palavra tem significados diferentes para cada um de nós. Para mim até já não significa nada de bom. Aliás, não significa nada. Não me aquece nem me arrefece.
- Não me digas que não acreditas na democracia!?
- Nesta democracia, onde impera o individualismo, já não. Numa democracia em que há milhões de pobres, que por não terem capacidade de lóbi não têm direitos, não acredito.
- Então porque é que não se organizam? Organizem-se!
 Francisco ri-se ao ouvir-se a si próprio pronunciar a ultima palavra, lembrando-se de uma velha anedota que assim terminava. Como não é contemporânea de Joana, esta não lhe encontra piada e prossegue no seu dissertar.
- Eu também estranho que com quarenta anos de democracia reste tanta gente desorganizada, mas se assim acontece, e eu não faço ideia porquê, não deve ser por acaso.
- Será porque o povo é avesso à organização espontânea?
 Sorri de novo, ele, com ar sarcástico.
- Mas se as organizações ditas de esquerda, das quais eu esperava outro comportamento em relação aos sem direitos, praticassem algum altruísmo em vez de olharem apenas para o crescimento contínuo dos seus direitos, gente como eu não teria chegado à miséria a que chegou.
- Lá estás tu a falar em altruísmo. Tu, que te dizes ateia, mais pareces uma beata religiosa, a falar do bodo aos pobres.
- Mas a verdade é esta: sem altruísmo até a democracia falha.
- Quem sabe se qualquer outro regime político, comunismo ou monarquia, se praticado com altruísmo, não fosse tão mau como nos parece à primeira vista nos tempos de hoje?
Aventa ele para o ar, com aquele mesmo sorriso sarcástico.
- Pode até ser. Quem sabe se no próximo século não temos um regime mais feliz, com um assexuado monarca cristão comunista no poder, que esbanje altruísmo com equidade pelos súbditos até os contaminar por inteiro?
Ele fica um pouco irritado, agora que o sarcasmo vem do lado dela, mas disfarça com uma fumaça e um gole na cerveja acabada de abrir com o isqueiro a quem dirige palavras.
 - Já que não serves para outra coisa…
  Atirando para o cesto dos papéis o objeto descartável, ele não se fica sem aflorar a parte da conjetura idealista que mais o intrigou.
- Porque é que o rei, ou rainha, tem de ser assexuado?
- Porque sem a pressão dos impulsos sexuais no cérebro agiria de uma forma mais racional e poderia pôr em prática pensamentos mais lúcidos com maior imparcialidade. Aliás, eu estou convencida que a espécie humana ainda está num estado mediano, numa evolução que ainda será longa. Portanto, mesmo os sábios de hoje terão de ter humildade suficiente para relativizar o conhecimento que já têm, e aceitar a sua enorme ignorância.
Calado mas com os neurónios a esbanjar contradições, ele mira-a e admira-a.
Perante as insistentes interrogações ela rejubila, satisfeita pelas questões que a sua recém-nascida composição provoca nele, e presta-se a explicar a filosofia subjacente na sua nova obra. Ela mesma se redescobre nalguns pormenores - e como é bom surpreender-se a si própria. Mais uma vez sente o gozo que só a arte lhe proporciona.
 Com a pintura na mão, voltando-a de um lado e de outro, ele expressa na face esgares de aprovação e comenta:
- É curioso. Apesar de ver nisso uma amálgama de papéis de jornal rasgados, nodoas de sangue e outras, tisna de carvão e rabiscos de esferográfica, a vista traz-me prazer e harmonia.
 Ao que ela, orgulhosa, tenta dar uma resposta de acordo com a verdade do que fez.
- O ser humano tem capacidade para ver com valorações diferentes determinadas coisas, de uma forma mais pormenorizada numas do que em outras. Há conjuntos visuais que entram por nós com muita facilidade, para os quais, sem darmos por isso, olhamos com muito rigor. Por exemplo, a nossa capacidade para reconhecer faces humanas é ultra sensível. Analogamente estou convencida passar-se o mesmo em relação à escrita: de tanto exercitarmos a leitura, ficámos com uma capacidade identicamente sensível para vermos palavras escritas, mormente as impressas. E ao depararmo-nos com trechos impressos em contextos inusuais experimentamos reações visuais específicas e diferenciadas de outras.
- Não me tinha passado tal coisa pela cabeça – acrescenta ele, sem perceber completamente a explicação, entre passas lançadas para o ar em argolas de fumo.
-Mesmo quando as vemos em contextos ousados e abusados, sem lógica óbvia, desalinhadas e repartidas caoticamente, continuamos a olhá-las com particular visão, o que nos pode surpreender e dar-nos outro tipo de gozo.
- Mas tu não as sujaste e maltrataste com azedume?
- Foi.
- E agora falas em gozo. Como se tivesses prazer com o azedo que elas comportam. Serás masoquista?
Ela sorri. Linda menina recompensada pelo apreço do próximo. Retribui a atenção com um abraço e um roçagar felino que o deixam em ponto de rebuçado.

Apesar da timidez com que aquece a rua, o sol penetra pelas frestas da gelosia com agressividade suficiente para os voltar a acordar. A manhã já foi, e eles, com tantos sonos e vigílias, deitares e ergueres, já vivenciaram uma semana numa só noite. O quarto tresanda sem que disso se apercebam. Sangue, fluxos sexuais, fumo, álcool... Sexo, drogas e rock n roll.
 Francisco não consegue concentrar-se no ato. Não sabe se por falta de vigor, inerente à sua idade, se pelo desgaste de tantas investidas num espaço de tempo tão limitado, se pelo facto da vista se desviar para o pequeno quadro em frente, caído no soalho de madeira e que lhe captura o olhar contra a sua vontade. E mesmo durante o menear dos corpos faz observações relativas ao intruso foco de atenção, acrescentando dificuldades à prossecução do intento primevo.
- Tenho ouvido dizer que os materiais de pintura são caros, mas esta maneira de pintar fica barata.
- Não tens também ouvido dizer que a necessidade aguça o engenho? Quem mal tem dinheiro para comer não se pode dar ao luxo de comprar tintas e suportes caros.
- Queixas-te tanto. Quanto ganhas tu afinal?
- Não tenho ordenado fixo, uns meses ganho bem, noutros nada. Ao fim do ano não chega a doze meses de ordenado mínimo.
- E eu a julgar-me pobre e mal pago. As minhas enfermeiras tiram por ano três vezes mais dinheiro que tu.
- A expressão “mal pagos” já não define nada, perdeu significado, porquanto é usada tanto por quem ganha quatrocentos como por quem ganha quatro mil.
- É também aqui que tu te baseias para dizeres que a palavra perdeu força?
- Pois é. Mas, voltando ao assunto, ainda acham pouco. Ainda gostava de saber em que quantias os sindicatos iriam parar de querer mais dinheiro e regalias para os seus associados.
 Continuam a balouçar-se maquinalmente como quem cumpre uma obrigação de aproveitar o tempo perdido.
- Aí está uma impossibilidade. O papel dessas organizações é precisamente reivindicar infinitamente. Exigir sempre mais é a sua obrigação, para isso foram criadas.
- Então quem se contrapõe? Onde está a força que possa equilibrar e tornar razoáveis as despesas que esses pagamentos acarretam?
- Quem governa. Numa empresa privada é a entidade patronal, no estado será o governo.
- Quer então dizer que são os governos que têm a culpa pela falência do estado, por, entre outras grandes asneiras, cederem às pressões dos sindicatos. E estes estão ilibados de culpa por terem apenas como missão as reivindicações infinitas?
 - Exatamente. A culpa é sempre dos governos que não pugnam pelo estado. Principalmente quando pagam rendas exorbitantes às PPP dos amigos.
- Como o estado somos todos nós e não é de ninguém … facilmente vai à falência, adiada para as gerações futuras, sem que os responsáveis se importem muito. Já o mesmo não pode acontecer no privado. Se uma empresa der prejuízo terá de fechar as portas ou mudar de rumo.
 Ele diz que sim com um baixar de cabeça e cala-lhe a boca com a sua, como quem não quer mais discussões políticas em hora imprópria, mas não se contém muito tempo sem desmanchar a sua mal interpretada anuência.
- Joaninha, essa discussão tinha pano para mangas.
 Ela compreende quão inoportuna está a ser, mas ao mesmo tempo sabe o poder de retórica que o seu corpo tem sobre a razão do adversário. Executa uma reviravolta, invertendo as posições, e toma os comandos. Tacitamente, entram num acordo que os leva a mais um culminar do que se tinham proposto. Bendizendo ele, não para os seus botões por que está nu, mas apenas para consigo, a eficácia do comprimidinho azul.

 Enquanto ele dorme ela recompõe-se sem disso necessitar e, em deambulações cerebrais, volta a lembrar-se do seu amigo Tiago e dos ideais que ambos defendem, vislumbrando raciocínios que não encaixam na sua lógica altruísta.
 Após improvisar uma maneira de colar o quadro na parede do quarto, deita-se junto do sabido cinquentão que ainda não sabe tudo.
 Antes de se engalfinharem pele enésima vez, como se o mundo acabasse hoje, apreciam e comentam durante nobres minutos a colagem à qual deram o pretensioso nome de “Esvaziamento da Palavra”.
 Seria uma réplica das anteriores, não fora o desfecho final. Francisco esforça-se com veemência, acompanhando de sons os movimentos pélvicos. Joana corresponde-lhe com muita sensualidade, fingida ou verdadeira nem ela o sabe, de tanto que vai aos treinos. Adivinha-se novo clímax. Ele emite um bestial som gutural e deixa de movimentar-se, escorregando suavemente para o lado da parceira.
 Num profundo sono fica, enquanto ela se trata, cantarolando no duche e esperando, do fogão, uma comidinha quente que se ultima.
 Finalmente notícias de Tiago. O telemóvel toca com o nome dele inscrito.
- Até que enfim! Onde é que estás?
- O mesmo pergunto eu. Podes apanhar-me à porta da esquadra? Estou com dificuldade em andar. Seria melhor se me pudesses ajudar.
- Ok. Vou já para aí.
 Forte e agradável, o cheirinho a comida vindo da cozinha faz-se assinalar.
- Chico!
- Chii…coo!
- Franciscooooooo...!
A diferença entre o efeito deste apelo nominal e o do primeiro da manhã é que desta vez o visado nunca mais acorda.
 Joana estranha a ausência de resposta e aborda-o na cama. Roxo e com baba aos cantos da boca, nada há que enganar.
Após a chamada, o 112 chega num ápice, mas mais cedo chegou a morte ao doutor Francisco, deixando a azarada mulher em mais uma encrenca das muitas em que a sua vida é pródiga.


 
 
 


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