O esvaziamento da palavra
- Chico!
- Chiii… cooo!
O polido silêncio da manhã retardada
entre lençóis prolonga-se, apenas riscado por este repetido apelo nominal.
- Fransciscoooo...!
Uma voz grave enrouquecida pela gosma da
ressaca, num palavrear sincopado e indecifrável, acode, por fim, à renitente
insistência, mas de uma forma tão ténue que nem deixa perceber, ao certo, se
ouviu o chamamento.
- Não tens leite no frigorífico?
Continua ela, com o propósito de
interromper o jejum.
- Já há muitos anos que deixei de ser bebé.
Responde-lhe ele, continuando o longo
processo de acordar e acendendo um cigarro em gesto maquinal.
Às primeiras passas a tosse rasgada desentope-lhe o aparelho de sopro, e às
segundas já ele projeta as palavras com clareza.
- Tens cerveja fresca no compartimento
de baixo, abre uma para ti e traz outra para mim. Não fazendo de ti criada.
Sem resposta falada, ela cumpre à letra
e regressa com as mãos refrescadas pelas garrafas, acoplando qualquer coisa de
petisco.
O desalinho do quarto é superior ao do
resto do apartamento, onde ainda se nota mão de mulher-a-dias algumas vezes por
semana. O mobiliário da casa, minimalista, não está empoeirado, quadros
alinhados e limpos, soalho da cozinha a brilhar, sem nódoas; tudo sinais
inequívocos de preocupação feminina, atestada pelo bilhetinho manuscrito a
lápis em cima da bancada: senor dotor não
esqueça dexar denhero o fim do mês ja foi. Felismina.
Um tanto disfarçadas pelo padrão
colorido dos lençóis, nódoas mais óbvias há que sobressaem de outras sem cor
definida. Pelo escarlate sanguíneo e porque misturadas em odores sexuais, não deixariam
qualquer vulgar investigador sair da lógica e fá-lo-iam não duvidar da
virgindade da mulher - coisa inacreditável na época do sexo livre, principalmente
quando a mulher em causa é uma estampa com trinta e sete anos.
Aberta uma nesga da janela, imperativo
que o ar viciado e azedo da alcova exige, quanto baste para sua renovação e não
comprometendo o sigilo da noitada, o rebuliço da rua penetra na realidade do
casal, que o não é, social e moralmente falando. Para se ser mais abusado e rigoroso
na indiscrição é preciso dizer que ainda há vinte e quatro horas não se
conheciam. Há precisamente quinze horas se viram pela primeira vez, ombreando
lado a lado, entre milhares de pessoas descontentes com as políticas do país,
numa manifestação contra a troika.
- Filhos da puta! Vão para casa e
deixem-nos gritar em paz! Vocês estão no mesmo barco que nós!
Polícias fazem ouvidos de mercador, treinados
para o efeito, não bolem uma palha, como se água lhes circulasse nas veias.
Quietos mas nem tanto, mantêm-se os cães, seus pares. Binómios que só
evidenciam alguma inquietação ao rebentar dos petardos.
Dois encapuçados amarrotam e atiram
latas de cerveja já bebida, cujo estralejar de encontro às lajes da escadaria
faz erguer o cão mais próximo que, nervoso com o pulso do militar, faz intentos
de lhe morder.
- Vai para casa, filho da puta! A tua
mulher está lá com o amante, enquanto tu estás aqui a fornicar o povo. Chulo!
Cabrão!
Joana não tem tento na língua e
arrisca-se a umas bastonadas. De mochila às costas, encostada às grades, sem
mobilidade para qualquer dos lados, pois tem literalmente em cima de si toda a
multidão de protestantes, logo que haja um ripostar da polícia de choque será
das primeiras a apanhar.
- Baixa-te um pouquinho. Não te mexas
agora. Deixa-me abrir a mochila. Ok. Já cá canta.
Tiago demora pouquíssimo a acender e
arremessar o coquetel molotov. E também não tarda a ser agarrado de trás por
várias mãos poderosas que o algemam e levam aos repelões entre a multidão. Os
tipos que estavam a seu lado a lançar bocas eram bófias. E outros, mais ao lado,
não se sabe o que são, visto que nem esboçam o mínimo gesto de solidariedade
para com o capturado. Da porradaria que lhe foi endereçada sobrou alguma para
Joana enquanto, em vão, o tentou ajudar a livrar-se dos gorilas. De cara
ensanguentada, atordoada pelas bastonadas que lhe calharam, ela vê-o desparecer
arrastado, ante a indiferença dos rostos protestantes, ficando com a
desconfiança de não estarem todos ali pelo mesmo motivo, a lutar com a garra
que faziam parecer, pelos mesmos objetivos.
- Governo para a rua, já! Queremos as nossas vidas de volta!
Gritam os sindicalizados, empunhando
cartazes “Que se lixe a troika” atrás
de si, palavras que fazem luz na cabeça de Joana. Ela não quer a mesma vida de
volta, ela está ali por uma vida melhor, pois nunca passou da miséria que o
trabalho precário de cenógrafa lhe proporcionou toda a sua vida de adulta. Os
recibos verdes, que tem de passar para receber irregularmente os parcos euros
que lhe sustentam a pobreza, são enleados numa tal teia de obrigações que do pouco
vencimento recebido ainda tem de tirar uma parte do pão para boca, para pagar a
segurança social - por acaso ali representada ao lado, por pessoas que conhece,
algumas delas as mesmas que já a atenderam, com má cara; elas também erguem cartazes
“ Que se lixe a troika”.
Joana não compreende estas leis que a
obrigam a cumprir um sistema deficiente, sem garantia de futuro, cujos
executores nunca ouviram os lesados sem capacidade de lóbi e só têm em conta os
que, mal ou bem, ainda têm emprego certo. Qualquer pessoa a recibo verde é
escalpada por este sistema, cego para ver os mais pobres; sistema que é servido
pelas mesmas mãos que empunham os cartazes “ Que se lixe a troika” e “Queremos
as nossas vidas de volta”.
A alguns metros das baias, um cartaz
exibe a queixa de que são sempre os mesmos a sofrer os cortes, mas Joana sabe
que, mesmo depois desses cortes, quem o empunha ainda ganha muito mais que ela,
e não tem dificuldade em inferir a discrepância existente entre ela e este, antes
de ele ter o vencimento minguando. Os próprios jornalistas dos noticiários
aplicam esta mesma frase poderosa de que “são
sempre os mesmos a sofrer os cortes” fazendo passar a ideia errada de que
são estes os pobres do país. Este tipo de queixoso apenas o é há pouco tempo,
enquanto ela sempre o foi. A certeza de que esta gente nunca se importou com os
injustiçados de longa data está registada na cabeça dos que nada têm desde há
muitos anos. Porém é pena que o poder desta frase seja esvaziado pelo contexto
enganoso e pleno de sofismas de quem a usa.
- Bendita crise que veio ressuscitar a luta política – verbaliza ela em
surdina.
Misturados na multidão estão os que
empunham um cartaz com décadas de existência e que tem reivindicado, com frase
permanente, “ governo para a rua, eleições
antecipadas já”. A estes só serve o desgoverno, visto que mal entra um
governo novo já eles pedem eleições antecipadas. Deste grupo fazem parte
pessoas que Joana conhece, que têm uma boa vida, com ordenado certo, catorze
ordenados por ano, férias no estrangeiro e acesso privilegiado à saúde em
relação a ela. Razões que a levam a pensar ser esta mostra de descontentamento
puro blefe, exemplo óbvio da falta de coerência entre a palavra e os atos. Tanta
hipocrisia desfalca e fragiliza a força do verbo.
Joana percebe não estarem todos os
manifestantes a reivindicar o mesmo. As mesmas palavras de ordem, tanto
escritas como gritadas, não têm o mesmo significado para toda a gente.
Os que querem a vida de volta são apenas
os que, não se importando com o definhar dos outros cidadãos enteados do
sistema, foram mamando na teta do estado até a secarem por muitos anos
vindouros. Esta mistura de gente com interesses tão diferentes não pode ter
força para mudar o país para o bem.
- Gelada, como eu gosto. Passa-me o paté.
Bolacha sem mais nada é sensaborona.
Duas goladas dele deixam a garrafa quase vazia. Ela é vagarosa e contida no
beber, preferindo comer mais, substancialmente, aproveitando acepipes a que não
tem acesso com regularidade, entremeando conversa com frases assertivas que
demonstram lucidez de raciocínio e que terminam quase todas com um preocupado “que horas já são?”.
- Tenho de ir ver do Tiago. Estou farta
de lhe ligar e ele não atende. Os gajos levaram-no e eu tenho de saber para
onde.
- Não te preocupes que ele está bem.
Deita-te de novo aqui Mariana, que eles soltam-no perto da hora de almoço, para
não terem de lhe dar de comer. É o costume.
- Joana. Sou Joana. Têm a mesma
terminação mas não são a mesma coisa.
- Além do mais não podes ir-te embora
sem que eu te veja bem essa ferida na cabeça. As escoriações do braço não são
preocupantes e não passam disso mesmo, arranhões.
- Não tem problema. Só me dói ao de
leve.
- Como estavas desmaiada quando eu te apanhei, o melhor é passares no hospital
e radiografares o crânio, para ficares descansada. Eu vou entrar de banco à
meia-noite, mas é melhor não esperares por mim.
- Queres outra? Vou buscar mais comida,
estou esfaimada. Estas entradas abriram-me o apetite.
- Entradas? Se calhar foi da ginástica
acrobática.
Piada acompanhada de risos de macho
latino fora de moda.
Ele prefere acender outro cigarro e
fumá-lo como petisco, vê-la comer com desfastio e lembrar-se de quanto era
comilão em novo. Agora com menos cabelo e menos apetites valoriza mais a
voracidade da juventude bem encabelada, passando-lhe os dedos pela farta juba
negra, enquanto ela se sacia com os proventos da casa.
Ao som da digitalizada alta-fidelidade, lambendo os dedos e ultimando a golada
derradeira, como quem já não tem nada a perder ela solta a pergunta armazenada
na garganta.
- O que é que tu estavas a fazer na
manif? Não te falta nada em casa, tens um carro topo de gama, fazes férias no
estrangeiro…
Interrompendo-a, para que ela não se
alargue mais no património, passa-lhe a mão pelos seios.
- Precisamente por isso, e porque não
tenho só um carro, nem só esta casa. Porque não quero diminuir os meus
pertences é que eu lá estava. Imagina que só lá estavam as pessoas que querem
ver a troika na rua. Esse desiderato seria conseguido e eu não teria o meu
vencimento pago, porque sem troika cá a falência do estado é efetivada. E para
evitar esse colapso material é que lá estavam certas forças de poder, que têm
tantas culpas do estado a que o país chegou quanto os governos que por cá
passaram, mas que cobardemente inculcam as culpas nos outros poderes. Ou tu não
sabes que quem segura o verdadeiro povo descontente são os guardiões oficiais
da esquerda: a esquerda parlamentar e os sindicatos da função pública? Sem
estes travões já cá não estava a troika, aliás, nem tinha entrado. Peço
desculpa de ser tão cru e direto, mas tenho pena da tua ingenuidade.
Joana não quer crer no que está a ouvir.
Tanto cinismo concentrado não consegue entrar-lhe por junto nos ouvidos.
- Não brinques com coisas sérias, Chico.
Quer dizer que só és sócio do partido para tirares dividendos? Tu e outros do
teu gabarito só lá estavam para emperrar o processo? Não me lixes, senhor
doutor!
- Porque é que tu achas que me estafei a
tirar o curso de médico, para ganhar o mesmo que tu? Para ter as mesmas
regalias que qualquer outro? Com certeza que não!
Molha de novo a garganta.
- Melhor ainda, nós nem corremos o risco
de ficar desempregados, porque contra essa possibilidade está a ordem
prevenida. Nunca alcançaremos o número de médicos necessários para suprir as
necessidades do país, garantindo assim o lugar ao sol dos que já cá estão.
- E eu a pensar que a vossa classe
estava prenhe de altruísmo.
- Estás redondamente enganada, menina. A
grande maioria é composta por gente vaidosa e egoísta que sempre ambicionou uma
profissão bem remunerada e com estatuto de Deus. Há os que cumprem o primeiro e
grande ideal de Hipócrates, mas são uma minoria. E para te provar que também os
há bêbados e engatatões estou cá eu, como tu já viste.
Ela está siderada com tanta desvergonha.
É débito demais para um só jorro. E só descomprime após a última intervenção
dele quando, desmanchado de riso, pronuncia:
- Estava a brincar, Joaninh’avoa avoa!
Cabisbaixa há longos minutos, a rabiscar papeis rasgados, ela tenta recompor-se
daquele incómodo emocional. Com os dedos pretos de carvão escolhido e retirado
dentre as brasas apagadas, esfrega uma folha A4 com pedaços de jornal colados
ao acaso, uns de cabeça para baixo e outros nas mais irregulares direções.
Diversificando a pressão, ora do indicador ora do polegar, consegue variedade
nas marcas que inscreve, cobrindo algumas áreas com degradés controlados. Em
parangonas e desalinhada das demais, a palavra democracia sobressai. E, talvez
por isso, ela trata de lhe diminuir o protagonismo aplicando-lhe uma boa dose
de sombra carbónica. Aperta uma das feridas do braço e deixa propositadamente
cair umas pingas de sangue sobre o trabalho de composição. Não ficando
satisfeita com a vermelhidão atingida, acaba por entornar uma porção de
desinfetante encarnado. Esse, sim, colora e remata a criação artística, que
mais pessoal e inédita não poderia ter sido.
- Toma que eu te ofereço. Ficas com uma
obra minha, para recordação da maior manif, jamais acontecida no país.
- Ó… pá! Muito obrigado.
Começa por beijá-la como agradecimento,
mas prolonga a ação com uma dose de língua extra, a que ela corresponde em
duplicado.
- Não consigo perceber estes gatafunhos feitos a caneta, parecem-me palavras
mas não as consigo decifrar. Estas letras não são minhas conhecidas.
Inventaste-as tu?
- É verdade. Inventei-as de momento. Não querem dizer nada de especial. Aliás,
nem pretendem valor semântico.
- Mas uma palavra sem significado não se cumpre.
- Exatamente como grande parte das palavras de hoje em dia, que não têm valor
nenhum na nossa cabeça, visto que já não produzem efeito em nós.
Com a repetida recusa do isqueiro, ele
vai à sala procurar lume para acender o cigarro, aproveita as poucas brasas do
borralho e reativa a fogueira da clássica chaminé.
- Às vezes gosto de acender o cigarro diretamente das brasas, tem um gosto
particular que me faz viajar no tempo e recordar boas passagens.
- Acende um também para mim, pode ser que me traga também boas memórias, já que
o presente não é grande coisa.
Retornado da casa de banho pega mais uma
vez no papel trabalhado e profere a sua crítica pessoal.
- A palavra democracia está muito encarvoada e enodoada para o meu gosto. Foi
de propósito?
- Claro. A democracia que foi boa para ti, não me deu grande coisa. Mãe para ti
e madrasta para mim. Portanto, estás a ver, a mesma palavra tem significados
diferentes para cada um de nós. Para mim até já não significa nada de bom.
Aliás, não significa nada. Não me aquece nem me arrefece.
- Não me digas que não acreditas na democracia!?
- Nesta democracia, onde impera o individualismo, já não. Numa democracia em
que há milhões de pobres, que por não terem capacidade de lóbi não têm
direitos, não acredito.
- Então porque é que não se organizam? Organizem-se!
Francisco ri-se ao ouvir-se a si próprio
pronunciar a ultima palavra, lembrando-se de uma velha anedota que assim
terminava. Como não é contemporânea de Joana, esta não lhe encontra piada e
prossegue no seu dissertar.
- Eu também estranho que com quarenta anos de democracia reste tanta gente
desorganizada, mas se assim acontece, e eu não faço ideia porquê, não deve ser
por acaso.
- Será porque o povo é avesso à organização espontânea?
Sorri de novo, ele, com ar sarcástico.
- Mas se as organizações ditas de esquerda, das quais eu esperava outro
comportamento em relação aos sem direitos, praticassem algum altruísmo em vez
de olharem apenas para o crescimento contínuo dos seus direitos, gente como eu
não teria chegado à miséria a que chegou.
- Lá estás tu a falar em altruísmo. Tu, que te dizes ateia, mais pareces uma beata
religiosa, a falar do bodo aos pobres.
- Mas a verdade é esta: sem altruísmo até a democracia falha.
- Quem sabe se qualquer outro regime político, comunismo ou monarquia, se
praticado com altruísmo, não fosse tão mau como nos parece à primeira vista nos
tempos de hoje?
Aventa ele para o ar, com aquele mesmo sorriso sarcástico.
- Pode até ser. Quem sabe se no próximo século não temos um regime mais feliz,
com um assexuado monarca cristão comunista no poder, que esbanje altruísmo com
equidade pelos súbditos até os contaminar por inteiro?
Ele fica um pouco irritado, agora que o sarcasmo vem do lado dela, mas disfarça
com uma fumaça e um gole na cerveja acabada de abrir com o isqueiro a quem dirige
palavras.
- Já que não serves para outra coisa…
Atirando para o cesto dos papéis o
objeto descartável, ele não se fica sem aflorar a parte da conjetura idealista
que mais o intrigou.
- Porque é que o rei, ou rainha, tem de ser assexuado?
- Porque sem a pressão dos impulsos sexuais no cérebro agiria de uma forma mais
racional e poderia pôr em prática pensamentos mais lúcidos com maior
imparcialidade. Aliás, eu estou convencida que a espécie humana ainda está num
estado mediano, numa evolução que ainda será longa. Portanto, mesmo os sábios
de hoje terão de ter humildade suficiente para relativizar o conhecimento que
já têm, e aceitar a sua enorme ignorância.
Calado mas com os neurónios a esbanjar contradições, ele mira-a e admira-a.
Perante as insistentes interrogações ela rejubila, satisfeita pelas questões que
a sua recém-nascida composição provoca nele, e presta-se a explicar a filosofia
subjacente na sua nova obra. Ela mesma se redescobre nalguns pormenores - e como
é bom surpreender-se a si própria. Mais uma vez sente o gozo que só a arte lhe
proporciona.
Com a pintura na mão, voltando-a de um
lado e de outro, ele expressa na face esgares de aprovação e comenta:
- É curioso. Apesar de ver nisso uma amálgama de papéis de jornal rasgados,
nodoas de sangue e outras, tisna de carvão e rabiscos de esferográfica, a vista
traz-me prazer e harmonia.
Ao que ela, orgulhosa, tenta dar uma
resposta de acordo com a verdade do que fez.
- O ser humano tem capacidade para ver com valorações diferentes determinadas
coisas, de uma forma mais pormenorizada numas do que em outras. Há conjuntos
visuais que entram por nós com muita facilidade, para os quais, sem darmos por
isso, olhamos com muito rigor. Por exemplo, a nossa capacidade para reconhecer
faces humanas é ultra sensível. Analogamente estou convencida passar-se o mesmo
em relação à escrita: de tanto exercitarmos a leitura, ficámos com uma
capacidade identicamente sensível para vermos palavras escritas, mormente as
impressas. E ao depararmo-nos com trechos impressos em contextos inusuais
experimentamos reações visuais específicas e diferenciadas de outras.
- Não me tinha passado tal coisa pela cabeça – acrescenta ele, sem perceber
completamente a explicação, entre passas lançadas para o ar em argolas de fumo.
-Mesmo quando as vemos em contextos ousados e abusados, sem lógica óbvia,
desalinhadas e repartidas caoticamente, continuamos a olhá-las com particular
visão, o que nos pode surpreender e dar-nos outro tipo de gozo.
- Mas tu não as sujaste e maltrataste com azedume?
- Foi.
- E agora falas em gozo. Como se
tivesses prazer com o azedo que elas comportam. Serás masoquista?
Ela sorri. Linda menina recompensada pelo apreço do próximo. Retribui a atenção
com um abraço e um roçagar felino que o deixam em ponto de rebuçado.
Apesar da timidez com que aquece a rua,
o sol penetra pelas frestas da gelosia com agressividade suficiente para os voltar
a acordar. A manhã já foi, e eles, com tantos sonos e vigílias, deitares e
ergueres, já vivenciaram uma semana numa só noite. O quarto tresanda sem que
disso se apercebam. Sangue, fluxos sexuais, fumo, álcool... Sexo, drogas e rock
n roll.
Francisco não consegue concentrar-se no
ato. Não sabe se por falta de vigor, inerente à sua idade, se pelo desgaste de
tantas investidas num espaço de tempo tão limitado, se pelo facto da vista se
desviar para o pequeno quadro em frente, caído no soalho de madeira e que lhe
captura o olhar contra a sua vontade. E mesmo durante o menear dos corpos faz
observações relativas ao intruso foco de atenção, acrescentando dificuldades à
prossecução do intento primevo.
- Tenho ouvido dizer que os materiais de pintura são caros, mas esta maneira de
pintar fica barata.
- Não tens também ouvido dizer que a necessidade aguça o engenho? Quem mal tem
dinheiro para comer não se pode dar ao luxo de comprar tintas e suportes caros.
- Queixas-te tanto. Quanto ganhas tu afinal?
- Não tenho ordenado fixo, uns meses ganho bem, noutros nada. Ao fim do ano não
chega a doze meses de ordenado mínimo.
- E eu a julgar-me pobre e mal pago. As minhas enfermeiras tiram por ano três
vezes mais dinheiro que tu.
- A expressão “mal pagos” já não
define nada, perdeu significado, porquanto é usada tanto por quem ganha
quatrocentos como por quem ganha quatro mil.
- É também aqui que tu te baseias para dizeres que a palavra perdeu força?
- Pois é. Mas, voltando ao assunto, ainda acham pouco. Ainda gostava de saber
em que quantias os sindicatos iriam parar de querer mais dinheiro e regalias
para os seus associados.
Continuam a balouçar-se maquinalmente
como quem cumpre uma obrigação de aproveitar o tempo perdido.
- Aí está uma impossibilidade. O papel dessas organizações é precisamente
reivindicar infinitamente. Exigir sempre mais é a sua obrigação, para isso
foram criadas.
- Então quem se contrapõe? Onde está a força que possa equilibrar e tornar
razoáveis as despesas que esses pagamentos acarretam?
- Quem governa. Numa empresa privada é a entidade patronal, no estado será o
governo.
- Quer então dizer que são os governos que têm a culpa pela falência do estado,
por, entre outras grandes asneiras, cederem às pressões dos sindicatos. E estes
estão ilibados de culpa por terem apenas como missão as reivindicações infinitas?
- Exatamente. A culpa é sempre dos
governos que não pugnam pelo estado. Principalmente quando pagam rendas
exorbitantes às PPP dos amigos.
- Como o estado somos todos nós e não é de ninguém … facilmente vai à falência,
adiada para as gerações futuras, sem que os responsáveis se importem muito. Já
o mesmo não pode acontecer no privado. Se uma empresa der prejuízo terá de
fechar as portas ou mudar de rumo.
Ele diz que sim com um baixar de cabeça
e cala-lhe a boca com a sua, como quem não quer mais discussões políticas em
hora imprópria, mas não se contém muito tempo sem desmanchar a sua mal
interpretada anuência.
- Joaninha, essa discussão tinha pano para mangas.
Ela compreende quão inoportuna está a
ser, mas ao mesmo tempo sabe o poder de retórica que o seu corpo tem sobre a
razão do adversário. Executa uma reviravolta, invertendo as posições, e toma os
comandos. Tacitamente, entram num acordo que os leva a mais um culminar do que
se tinham proposto. Bendizendo ele, não para os seus botões por que está nu,
mas apenas para consigo, a eficácia do comprimidinho azul.
Enquanto ele dorme ela recompõe-se sem
disso necessitar e, em deambulações cerebrais, volta a lembrar-se do seu amigo
Tiago e dos ideais que ambos defendem, vislumbrando raciocínios que não
encaixam na sua lógica altruísta.
Após improvisar uma maneira de colar o
quadro na parede do quarto, deita-se junto do sabido cinquentão que ainda não
sabe tudo.
Antes de se engalfinharem pele enésima
vez, como se o mundo acabasse hoje, apreciam e comentam durante nobres minutos
a colagem à qual deram o pretensioso nome de “Esvaziamento da Palavra”.
Seria uma réplica das anteriores, não
fora o desfecho final. Francisco esforça-se com veemência, acompanhando de sons
os movimentos pélvicos. Joana corresponde-lhe com muita sensualidade, fingida
ou verdadeira nem ela o sabe, de tanto que vai aos treinos. Adivinha-se novo
clímax. Ele emite um bestial som gutural e deixa de movimentar-se, escorregando
suavemente para o lado da parceira.
Num profundo sono fica, enquanto ela se
trata, cantarolando no duche e esperando, do fogão, uma comidinha quente que se
ultima.
Finalmente notícias de Tiago. O
telemóvel toca com o nome dele inscrito.
- Até que enfim! Onde é que estás?
- O mesmo pergunto eu. Podes apanhar-me à porta da esquadra? Estou com
dificuldade em andar. Seria melhor se me pudesses ajudar.
- Ok. Vou já para aí.
Forte e agradável, o cheirinho a comida
vindo da cozinha faz-se assinalar.
- Chico!
- Chii…coo!
- Franciscooooooo...!
A diferença entre o efeito deste apelo nominal e o do primeiro da manhã é que
desta vez o visado nunca mais acorda.
Joana estranha a ausência de resposta e
aborda-o na cama. Roxo e com baba aos cantos da boca, nada há que enganar.
Após a chamada, o 112 chega num ápice, mas mais cedo chegou a morte ao doutor
Francisco, deixando a azarada mulher em mais uma encrenca das muitas em que a
sua vida é pródiga.
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