Ensaios Portugal  - O Ponto de Encontro da Lusofonia

Alexandre Dias Pinto


Movimento Pendular: "'O Balouço', de Fragonard" de Jorge de Sena


Alexandre Dias Pinto
Centro de Estudos Comparatistas
Faculdade de Letras de Lisboa

O poema "'O Balouço', de Fragonard" de Jorge de Sena está incluído no volume Metamorfoses - uma colectânea de composições motivadas por obras de arte visuais - e faz parte do conjunto de poemas que pretendem, mais do que descrever os quadros, esculturas e fotografias que lhes servem de ponto de partida, recriá-los, "metamorfoseá-los", por um processo alquímico, em filigranas poéticos. No entanto, é verdade que o poema descreve a pintura numa dada perspectiva, que é a do eu lírico, e fá-lo colocando o enfoque sobre um aspecto do quadro: o erotismo.
A vertente descritiva do texto de Sena reside no facto de (re)construir a pintura de Fragonard, recuperando e reproduzindo, com uma preocupação totalizadora e com pormenor, os elementos que nesta se encontram. Porém, esta descrição é filtrada e condicionada pelo subjectividade daquele que percepciona o quadro, o eu poético. Assim, o que nos é apresentado é uma tradução intersemiótica (Cf. Jackobson, R., "On linguistic aspects of translation", in Theories of Translation, Chicago and London, University of Chicago Press, 1992, p.145) de um "texto" em linguagem icónica - o quadro - para outro em linguagem verbal e com regras específicas - o poema. Devido, então, à natureza do texto lírico, reproduzem-se as sensações e as emoções que a pintura desperta no sujeito poético. O seu enunciado é um longo discurso de espanto e deslumbramento perante a obra (visual) que contempla. Daí que todo o poema seja constituído por frases exclamativas (ao todo, nove), como modo de traduzir o arrebatamento sentido por aquele que o percepciona e que transmite essa experiência. O uso anafórico das partículas exclamativas - "Que" e "Como" - traduz o estado hipnótico de maravilhamento do observador no acto de contemplação.
O êxtase vivido pelo eu lírico deixa-o numa posição de dificuldade para comunicar essa experiência estética. Reencontramos aqui, de um modo camuflado, não abertamente admitido, o topos do inefável. Daí que o discurso fortemente retórico deste poema seja uma forma de tentar vencer as limitações expressivas da linguagem para que, assim, seja possível ao sujeito da enunciação descrever a obra e reproduzir as suas impressões sobre esta; e, no entanto, a sua loquacidade - ainda que espartilhada à custa em decassílabos, como tentativa de a controlar - também não consegue traduzir com clareza e rigor a imagem e as sensações que ele interiorizou. O carácter retórico do poema não radica apenas nas exclamações, mas também na cascata de figuras de estilo que se abatem, de A a Z (do A de anáfora ao Z de zeugma, passando por antíteses, elipses, hipálages, metáforas, oxímoros e personificações), sobre os versos.
E qual é a situação retratada que tanto maravilha o sujeito poético e que este sente tanta dificuldade em traduzir por palavras? O quadro de Fragonard retrata uma jovem que cruza o ar num balouço, sendo impelida por um homem mais velho (o marido ou o pai) e contemplada por um jovem que se esconde atrás de um arbusto. Rodeia este triângulo formado pelas figuras humanas uma vegetação abundante e esplendorosa, duas estátuas e um muro. Cada uma das frases exclamativas que constituem o poema (à excepção da última) refere-se a um pormenor do quadro, como que a representar a direcção do olhar de um espectador (o do eu lírico), que vai poisando sucessivamente em determinados elementos, para logo resvalar para figuras e pormenores circundantes. A título de exemplo, veja-se como, na primeira frase, a jovem (que nem chega a ser nomeada) convida o observador a reparar no arvoredo e nas saias ou como, na terceira, o olhar e o sapato conduzem a atenção do eu poético para a "luz difusa" e para a folhagem. Tal acontece porque a sensualidade não se cristaliza apenas nas figuras humanas, mas contamina todos os elementos do meio envolvente e, claro, a própria linguagem - repare-se na quantidade de palavras pertencentes ao campo semântico do erotismo: "lânguidas", "indiscretas", "gozo", "ardente", "sexo", "seios", "obsceno", etc. Assim, o jardim luxuriante participa no erotismo da cena e adensa-o. A personificação, "palpitar de entranhas na folhagem", a hipálage, "saias[da jovem]/ que lânguidas esvoaçam indiscretas" e a metáfora, "Como um jardim se emprenha de volúpia", dão bem conta disso. Na vegetação e nas estátuas, projectam-se desejos, significados e sentimentos que são próprios das personagens humanas. Estamos aqui perante o conceito de "correlativo objectivo" proposto por T.S.Eliot no seu ensaio "Hamlet" (1). Aliás, Jorge de Sena faz alusão a este conceito, embora noutro contexto, no pós-fácio a Metamorfoses (Sena, J., Metamorfoses, Lisboa, Edições 70, 1987. p. 156).
Os olhos do espectador percorrem a tela num movimento pendular (seguindo o balouço): da jovem, às suas saias até à luz difusa, recuando, depois, para o tronco torcido de uma árvore e para a sombra, de novo para a esquerda, até à roupa da jovem, e de volta à estátua, ao muro e ao marido, etc. Note-se ainda como o quadro está dividido em duas secções cortadas pela linha diagonal do balouço: à esquerda encontramos luz, o jovem amante, a descontracção da personagem feminina que separa as pernas e descalça o sapato e os ramos que se espalham: imagens de liberdade, fulgor e fertilidade; à direita, a sombra, o "marido" idoso segurando a jovem com cordas, o tronco de árvore torcido e engelhado: imagens de velhice, impotência e esterilidade. O movimento pendular descritivo do poema é, como vimos, sensível a esta bipartição da tela.
O balouço é, por este e outros motivos, o elemento central do poema - como também o do quadro -, visto que se reveste de uma carga simbólica aglutinadora das principais ideias desenvolvidas pelo texto: representa uma série de oscilações que perpassam os versos desta composição. A primeira é a oscilação do sentido das palavras e frases, que teima em não se fixar, ou a aparente contradição como modo de exprimir o acto ambíguo da sedução ou do erotismo. Os oxímoros e as antíteses revelam como se procura o equilíbrio entre dois pólos opostos ou o aparente paradoxo para exprimir a ideia inefável: "[o amante] reclina[-se]/ no gozo de escondido se mostrar"; "Que estátuas e que muros se balouçam"; e "como / é galanteio o gesto com que, obsceno, / o amante se deleita olhando apenas" (itálico meu). Também a sinestesia, "névoa ardente", e o zeugma, "no olhar que pousa enviezado e arguto" são recursos estilísticos que procuram exprimir aquela franja de sentido aonde a literalidade semântica das frases não chega. Outros casos deste "balancear" são: a hesitação da jovem, entre a tentação e a proibição (entre o jovem e o "marido"); ou a alternância entre luz e a sombra ("na luz difusa como névoa ardente"), não permitindo que a imagem se defina; ou ainda a oposição estatismo-movimento das estátuas. No entanto, e como já foi referido, o erotismo é, por excelência, o domínio do sincretismo e da contradição, na medida em que reside na tensão entre desejo, sedução e a sua consumação e se move entre a líbido explícita e a mera sugestão do acto sexual ("Como ele a despe e como ela resiste").
A jovem e o balouço são o fiel desta balança, o pêndulo que se desloca ao ritmo ternário dos versos ("Como balouça | pelos ares | no espaço", etc.), cruzando o centro, sem se deter, e tocando alternadamente num e noutro extremo. O ritmo ternário associa-se também ao triângulo amoroso, amante-jovem-"marido".
O poema procura dar conta do jogo de "ver e ser visto" que é construído no quadro, chamando a atenção para o olhar do "amante" (versos 4 e 5; e 21 a 24), da jovem (v. 5 a 8), do "marido" (v. 17 e 18) e até das estátuas (v. 16 e 17). A esta teia de olhares que se entrecruzam, acrescenta-se, no poema, o do observador da tela, único "voyeur" da totalidade da cena.
O diálogo íntimo mantido entre o quadro de Fragonard e o poema de Sena advém ainda do facto de este último apontar para a suspensão temporal da cena descrita - sem deixar, contudo, de fazer alusão ao seu dinamismo. Nesse aspecto, o último verso - "Como do mundo nada mais importa!" - é exímio em sugerir a ideia de atemporalidade, de absolutização do momento fixado, que é o instante ímpar e excepcional que a pintura procura sempre retratar e que se perpetua. Daí o clímax do poema - e simultaneamente a ideia mais pictórica do poema - estar contida neste verso totalizador da experiência estética.
Lembremos também que a alusão ao quadro se faz quando o poema recorre à (meta-) linguagem da pintura para se construir e para aludir à obra pictórica. Encontramos palavras como "espaço" (verso 1), "entrevêem" (v.4), "luz difusa" (v.8), "sombras" (v.12), "avolumam" (v.14) e "enviezado" (v.23).
Como conclusão, podemos constatar que o poema de Jorge de Sena procura posicionar--se próximo da pintura de Fragonard, na medida em que descreve e glorifica o momento ilustrado, ao mesmo tempo, o dinamismo e a suspensão temporal da cena retratada. Nessa medida, "'O Balouço', de Fragonard" é um manifesto à pintura e um louvor às potencialidades expressivas e significativas da imagem, as quais a palavra tem dificuldade de igualar. Será um lugar comum recordar o provérbio chinês que afirma que "uma imagem vale mil palavras", mas não resisto a fazê-lo.

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(1) "The only way of expressing emotion in the form of art is by finding an "objective correlative"; in other words, a set of objects, a situation, a chain of events which shall be the formula of that particular emotion; such that when the external facts, which must terminate in sensory experience, are given, the emotion is immediately evoked." (Eliot, T.S., "Hamlet", in Selected Essays, London, Faber and Faber, 1947, p. 84.)

Alexandre Dias Pinto - Lisboa, Portugal
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