Contos Portugal  - O Ponto de Encontro da Lusofonia

Manuel Carvalho



O TI LÚCIO


Quando conheci o ti Lúcio, rondava ele a casa dos sessenta. Viúvo, os filhos arrumados, vivia solitário, na sua pequena casa junto ao rio.
Ganhava a subsistência fazendo pequenos trabalhos de carpintaria numa rudimentar oficina que improvisara no pátio da casa.

- Não estou para aturar patrões - costumava dizer, com a sua voz tonitruante. Era uma voz que destoava da sua fraca figura : baixo, magro, trôpego das pernas cambaias atacadas pelo reumatismo que lhe ficara como herança do tempo em que era o mais credenciado obreiro de poços da região.

- Se não fosse este maldito reumático não havia aí nenhum diabo que corresse mais ligeiro do que eu. Nem rapazes de vinte anos. Antes de ser atacado por esta maldita moléstia, ainda não há muito tempo, saltava muros de dois metros de altura.

- Ó ti Lúcio, não está a exagerar ?

- Digo a verdade. Dois metros, p’ra mais do que p’ra menos.

- Agora já está velhote.

O rosto do carpinteiro tingia-se com o insulto. As veias do pescoço, um pescoço de galinha careca, cheio de pregas, inchavam de cólera.

- Velho está o teu avó, carago. O reumatismo é que me tolheu das pernas, mas há-de passar. Já viram estas mãos ? Onde estes dedos agarram, não largam mais.

Nestas ocasiões o seu rosto parecia rejuvenescer dez anos, num esforço supremo. Tinha um rosto deveras expressivo, não obstante(ou talvez por isso mesmo) as rugas que já o lavravam em todos os sentidos ; os olhos azuis e pequenos eram límpidos como os dum jovem ; o queixo quadrado e o nariz aquilino denotavam um espírito de antes quebrar do que torcer. Só a boca sugada, de lábios finos colados às gengivas meio desdentadas, é que quebrava a harmonia da pintura. Bem ! Para não falar da cabeça, em forma de ovo, já calva, que ele cobria cuidadosamente com a boina.

- A chamar-me velho ! Já vocês estarão na cova e ainda eu aqui andarei a gozar à tripa-forra.

Uma das suas manias relacionava-se com as suas ferramentas de ofício.
Ai de quem desluzisse nelas. Tinha de o ouvir.

- As minhas ferramentas ! Quem por aí tem ferramentas iguais às minhas ? Aposto a vida se mas apresentarem. Olhem para esta enchó, e este formão, vá digam lá, quem tem disto ? E é para não falar nesta serra que eu fiz por minhas próprias mãos. Ferramentas como estas nem os reis as têm. Nem por uma fortuna eu as vendia.

Só havia um meio de lhe cortar a verborreia.

- Ti Lúcio, consta que você anda para aí lançado com um borracho.

A mutação que se operava no rosto do homem era radical. Puxava o cico para os olhos e o queixo começava a tremer-lhe.

- Quem disse ? Querem lá ver que um homem já não pode ter os seus arranjinhos ?

- Mas, ó ti Lúcio, com essa idade ainda se mete com saias ?

- Mas elas é que se metem comigo ! As mulheres gostam é de homens experientes que lhes ensinem alguma coisa. Vocês, os rapazes de agora não as satisfazem. Não lhes sabem dar prazer. Comigo vão sempre satisfeitas. Esta aqui conhece-as palmo a palmo. Ainda o outro dia...- E lá vinha mais uma história recambolesca que a sua fértil imaginação engrinaldava com retoques de mestre.

Quando se encontrava comigo, a nossa conversa ia geralmente bater no tema crónico.

- Então, ti Lúcio, como tem passado ?

- Bem, Manel. O reumatismo é que não me larga. Isto é da humidade que apanhei no fundo dos poços. Mas ando a tomar uns remédios que me têm aliviado muito.

- Com o que isso passava sei eu....

- Diz lá, diz lá.

- Era casar outra vez. Você anda a precisar duma mulher.

- Não é a primeira vez que eu tenho pensado nisso. Mulheres não me faltam , mas um homem precisa duma companheira que lhe faça a comida e lave a roupa.

- É arranjá-la.

- Tem de ser, tem. É uma ideia que me anda a roer os miolos. Lá na tua terra, em Trás-os-Montes é que há muita mulher livre. Já lá passei uma vez, numa excursão, e sei como é. Aquilo é pobre e as mulheres, principalmente as viúvas, querem é um encosto. Eu tenho uma casita e ganho uns tostões.

Eu assentava-lhe uma palmada nas costas.

- Qualquer dia, vamos lá os dois. Vai arranjar uma brasa de vinte anos.

- Mesmo de trinta já me chegava. Não sou de má boca.

- Quando é que lá vamos ?

- Qualquer dia.

- Olha que já tenho uns tostões de parte para a viagem.

Se alguém, curioso, tentava tirar nabos da púcara, o ti Lúcio piscava-me um olho cúmplice e dava uma resposta ambígua.

- É um negócio só entre mim e o Manel.

Com o correr dos anos, o ti Lúcio foi piorando. Estava cada vez mais tolhido das pernas e louco por mulheres.

- Não admito a rapaz nenhum que seja mais homem do que eu na cama - gritava com a sua voz , que não perdera o vigor.

- O que você tem é língua - troçava a rapaziada.

- Tenho língua, ai é ? Trás cá a tua irmã e vais ver como ela vai de perna aberta. Eu saio ao meu pai, aos noventa anos ainda estava ali para as curvas.

Babava-se de prazer quando falava com alguma moça.

- Minha rica, o que tu precisas é dum homem como eu.

- P’ra quê, ti Lúcio ? Você já não me aquecia os pés.

- Queres experimentar ?

- Vocemecê ficava em pouco. Está é a precisar de descanso e caldos de galinha.

- Mas, experimenta, carago, nunca mais querias outro homem.

A rapariga soltava uma gargalhada e partia a rebolar as ancas, perseguida pelo olhar atiçado do velho.

Certo dia, o Jaime, um rapazola de dezoito anos, filho do Américo Coxo taberneiro, apareceu-lhe com uma folha de jornal.

- Ti Lúcio, está aqui uma coisa para si.

O ti Lúcio parou de aplainar a tábua, intrigado.

- O que estás a tramar desta vez ?

O rapaz leu em voz alta : senhora, a residir em Lisboa, 40 anos, viúva, educada, boa figura, sem filhos, deseja conhecer cavalheiro dos cinquenta aos sessenta anos, com posição estável, para fins matrimoniais.

O ti Lúcio arregalou os olhos.

- Lê isso outra vez - gaguejou.

O rapaz repetiu a cantilena.

- Mas eu já tenho 65 anos...

- Ano mais ano não interessa, o que ela quer é casar.

- Eu tenho uma casita...e ganho bom dinheiro.

- Vamos responder-lhe ?

- Se me fizeres esse favor...bem sabes que eu não sei ler nem escrever.

Desde esse dia, o ti Lúcio passou a viver em exclusivo para aquele idílio.

O Jaime escrevia-lhe as cartas e, a pretexto de lhe ficar em caminho, prometia metê-las na caixa do correio. Em vez disso ia direito ao café, onde a rapaziada esperava ansiosa. Depois, ali mesmo, em grupo, por entre cotoveladas, bagaços e gargalhadas, redigiam adoráveis cartas de amor de resposta, em nome duma fictícia Maria do Carmo, que endereçavam ao pobre velho. Este, mal o Artur carteiro lhe entregava a carta, corria à procura do confidente.

- Jaima, recebi outra carta - gritava eufórico, acenando a missiva.

O rapaz lia a carta com toda a seriedade.

- Ela está doida por si, ti Lúcio.

Toda a aldeia participava na troça.

- Então, ti Lúcio, quando é o casamento ?

- Está para breve, está para breve. Estás convidado.

- Vocemecê é um homem de sorte.

- Em um homem sendo honrado e trabalhador, a sorte não o desampara. Eu sabia que ela cá viria bater à porta.

O Jaime, a conselho da malta já farta de tão prolongado namoro, resolveu acelerar o noivado. Numa das cartas a noiva informou que iria ao encontro do noivo no próximo sábado, a fim de prepararem a casa para a futura boda. Chegaria no comboio da 1H50. Para ser reconhecida, ostentaria uma rosa vermelha no cabelo.

- Não era mais fácil mandar-me uma fotografia ? -estranhou o noivo.

- Ela quer manter o mistério até ao fim.

- Deve ser isso, deve.

Na manhã de sábado, o ti Lúcio saltou da cama aos primeiros alvores do dia. Sentia-se leve, esquecido o reumatismo. Assomou à porta. Uma leve aragem fê-lo arrepiar-se, mas o novo dia apresentava-se auspicioso, de céu lavado. Voltou para dentro de casa e pôs um púcaro esmaltado cheio de água a aquecer, para fazer a barba. Barbeou-se meticulosamente, com mil cuidados não fosse fazer algum lanho, diante do minúsculo espelho que pendurou no postigo da janela. Depois de lavar o rosto com água fria, vestiu o fato de fazenda a cheirar a naftalina que retirou do guarda-fatos. Tornou a olhar-se ao espelho e sentiu orgulho da figura reflectida.

O sol surguiu quente e dourado. A aldeia acordou parra mais um dia de trabalho árduo. As sirenes das fábricas começaram a roncar.

O ti Lúcio saiu para a rua.

- Vou esperar a minha noiva - dizia a toda a gente.

Entrou na tasca do Américo Coxo e pediu um um cálice de aguardente.

- Vocemecê hoje começa cedo.

- É para acalmar. Não é todos os dias qu’a gente vai receber a noiva. Já agora, telefona para Leiria a chamar um carro de praça. Faz-me esse favor.

- Já, ó ti Lúcio ? A sua noiva só chega depois do meio-dia.

- Não consigo sossegar. Lá na estação sempre estou melhor.

Chegou à estação por volta das dez horas. Sentou-se num banco da sala de espera.

Como o tempo corria devagar ! Passavam comboios que vomitavam e sugavam pessoas. Os bagageiros gritavam. As pessoas saiam e entravam na sala de espera sem lhe lançarem um olhar, atarefadas com as bagagens. Sentia vontade de comunicar com elas, de lhes confidenciar os seus planos. Ainda chegou a tentar entabular conversa com um senhor gordo com cara de bonacheirão mas enganou-se na porta, o sujeito deitou-lhe um olhar severo e saíu da sala sem uma palavra.

O ti Lúcio já não aguentava mais. Dirigiu-se a um bagageiro.

- O comboio da 1h50 ainda tarda muito ?

O homem atirou o boné para a nuca e deitou uma olhadela ao relógio da estação.

- Faltam 35 minutos, se não vier atrasado como é costume.

- Obrigado, senhor. Sabe, a minha noiva vem nesse comboio.

O bagageiro olhou-o de viés e afastou-se remoendo palavras ininteligíveis..

Passeou pela plataforma, esmagando as mãos uma na outra.

" Ela trará uma rosa vermelha nos cabelos para eu a reconhecer ", enterneceu-se.

Por fim, por volta das duas horas , o comboio assomou à curva.

O ti Lúcio, pálido, a alegria a morder-lhe os lábios, correu pela plataforma, atropelando as pessoas.

- Veja lá onde põe os pés.

- Desculpem, desculpem. Este é o comboio da 1h50, não é ?

O comboio deteve-se com um ranger de freios. As portas abriram e os passageiros começaram a descer. O velho punha-se no bico dos pés, dava pulos duma porta para outra, o olhar a varrer as caras, tentando lobrigar a cabeça ornamentada com a rosa vermelha.

Foram baldados todos os seus esforços. Os passageiros sairam, entraram outros, as portas cerraram e o comboio pôs-se em marcha, com um silvo longo e estridente. A plataforma despovoou-se.

" Não viera. Mentira-lhe. Tinham sido falsas todas as suas promessas."

Duas lágrimas deslizaram-lhe pelos sulcos do rosto.

Um bagageiro, que passava com um carrinho de mão carregado de caixotes, deu-lhe um encontrão.

- Arrede-se, tiozinho. Deixe um homem trabalhar.

- Desculpe, senhor.

Passados uns dias sobre este episódio, tornámo-nos a encontrar.

- Então, ti Lúcio, como tem passado ?

- Bem , Manel. O reumatismo é que não me larga.

Olhou ao redor, nervoso. Como se apercebesse que não estava ninguém por perto, tranquilizou-se. Puxou-me pelo braço.

- Não sei se soubeste do meu problema com aquela mulher de Lisboa.

- Soube, por alto - respondi , a tirar importância ao caso. - Mulheres !

- Pois é, as mulheres são assim. Um homem tem de estar preparado para tudo. Olha, queres que te diga ? Nunca tive muita confiança nas mulheres de Lisboa. São umas falsas. Para mim, as mulheres do campo são as melhores.

- Tornou a olhar ao redor e a boca abriu-se-lhe num sorriso dolorido.
Via-se que lhe custava a emergir daqueles dias difíceis. Até que conseguiu. As palavras começaram a jorrar fortes e sonoras, como antigamente.

- Vamos lá falar de homem para homem. A vida tem de continuar. Quando é que vamos lá acima , a Trás-os-Montes ?


Manuel Carvalho
paula@total.net

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