Contos Portugal  - O Ponto de Encontro da Lusofonia

Manuel Carvalho



O TI CAMARÃO


Um grande compincha, o Camarão ! Sanguíneo, uns olhitos verdes plantados no carão vermelhusco. Já cinquentão, ainda era capaz de rebentar os queixos ao mais pintado. Enormes mãos as suas ! Coriáceas, curtidas pelos trabalhos pesados que nunca lhe meteram medo. Uma das suas façanhas predilectas era espetar uma cavilha numa tábua de pinho, usando o punho como maço.

Mas não obstante a sua força descomunal e a poderosa compleição física, o Camarão era um verdadeiro pândego.

Nos últimos tempos, trabalhava como alombador na serração do Meneses, facto que lhe fazia dizer em jeito de graçola : P’ra estar há quatro anos na serração , das duas uma, ou assentei ou começo a ficar velho.

Encontrávamo-nos geralmente por volta das seis e meia da tarde, depois do trabalho.

- Éh patrão ! - Tratava-me habitualmente por " patrão ". Nos momentos de maior intimidade era o " camarada ".- Venha daí beber um copo. A serradura seca as goelas.

Diante do copo de carrascão, o Camarão era uma torrente de palavras. O seu talento narrativo emprestava um estranho fascínio aos casos mais corriqueiros. Havia duas histórias do seu vasto reportório que não me fartava de escutar.

- Ti Camarão, conte lá como arranjou a sua mulher.

- Foi uma boa peça, patrão, foi uma boa peça.

Bebia mais uma golada e passava as costas da manápula pelos beiços. Ritual que ele repetia dia após dia, compenetrado. Só então começava a falar com aquela voz roufenha castigada pelos frios e bagaçadas.

- Andava eu , por essa altura, a varejar azeitona prós lados da Sertã. O patrão sabe como é aquilo. Os homens varejam a azeitona, com varas, empoleirados nas oliveiras e as mulheres apanham-nas prós sacos. Foi aí que travei conhecimento com a minha futura. Hoje é uma farrapo velho. Mas nesse tempo era bem apetitosa, com as cores da mocidade na cara. Mas eu nem reparava nela se não tivesse largado a discutir com outra rapariga do rancho. Chamaram-se tudo e mais alguma coisa. E a minha futura, raivosa por não poder malhar na outra, levantou as saias e começou às palmadas no próprio rabo.

- Assim é que eu te dava, minha cabra - gritava. Deitavam lume os olhos da catraia.

Fiquei embeiçado logo ali. Aquelas pernas, fortes e brancas como neve deixaram-me de água na boca. Começei a namoriscar a cachopa. À sucapa, porque a família dela não me via com bons olhos. Diziam qu’eu era um valdevinos sem eira nem beira, e tinham razão, mas eu zangava-me com a coisa. Um homem não gosta que lhe atirem com as verdades à cara. Até que um dia, fartei-me de falar com ela às escondidas. Propus-lhe fugirmos e ela aceitou logo porque também estava mortinha por mim.
Vivemos juntos, sem ‘tarmos casados, um bom par de anos, porque ela era menor. Quando casámos já tínhamos dois filhos. Foram pelo próprio pé à festança.

O Camarão emborcava o resto do vinho e olhava-me, os olhitos a rirem.

- Dava um rimance, ãnh camarada ?- Agora já era o camarada.

- Encha mais dois, ó Américo - ordenava eu ao taberneiro.

As gargantas refrescadas, estávamos preparados para entrar na segunda história.

- Ti Camarão, conte lá como arrumou o campino na feira de Santarém.

Os olhitos esverdeados eram duas fendas relampejantes.

- Éh camarada, nem queira saber. Aquilo foi mesmo a sério. Aquilo foi briga de homens de tomates.

- Conte lá, conte lá - incitavam à nossa volta.

O Camarão inchava, sentindo-se o centro das atenções. Bebia um pequeno golo, enrolava um cigarro e quando sentia as atenções bem presas reatava a conversa.

- Por aquele tempo, eu era um rapazote alegre e atrevido como o carago. Eu era mesmo bonitote, ouviram ? Por onde eu passava, as moças pingavam amor por mim. E aquilo era uma porra. Um gajo é galo novo, alevantado da crista e não tá com meias medidas, Vá de ceifar em campo farto. Fiz uma razia que só visto. Hoje inté m’arrependo.. - Contrariando as palavras, o tom de voz era avelhacado. - Mas, voltando ao assunto, quando o caso sucedeu eu trabalhava na herdade dum conde, lá no Ribatejo. Ora na casa da herdade, aquilo era um palácio que só visto, servia uma rapariga como eu nunca vira. Aquilo é que era uma raparigaça. Umas ancas, uns peitos que só visto. Era um pedaço de mulher ! E a cara ! Bonita, bonita a valer, digo-vos eu. Atão os olhos, quando se fitavam numa pessoa, até nos derretiam, tão meigos que eram, assim como que a cair pró violeta.

Logo que a vi, partiu-se-me o coração. Naquela noite não preguei olho, só a pensar na raça da rapariga.
De manhãzinha acerquei-me disfarçadamente do palacete. Encontrei-a a dar milho aos pombos. Os bichos esvoaçavam ao redor dela, poisavam-lhe na cabeça e iam-lhe comer à mão. Aquilo perecia um quadro de santa, digo-vos eu.

- Atão a menina já tá a trabalhar de manhãzinha ?

Eu nem sabia o que dizer pra meter conversa. Ela ergueu pra mim o rosto risonho e os nossos olhos encontraram-se. Foi assim que começou o derriço. Bons tempos aqueles ! Era tal o fogo da nossa paixão que tivemos de nos consumir nele. Foi numa noite de luar, à beira do ribeiro que atravessava a herdade. Ainda hoje m’alembro de tudo com se tivesse sido ontem.

A porra toda é que eu já vivia junto com a minha futura e até já tinha um filho. Eu guardara segredo mas veio a saber-se lá na quinta. Foi um sarrabulho dos diabos. Os irmãos dela queriam matar-me e s’eu não me tivesse pisgado depressa, teria lá deixado os ossos. Os campinos são de temer. Em lhes chegando a mostarda ao nariz ninguém os atura. E eu, palavra de honra, tive pena da cachopa. Foi o destino.

Pois, como disse, pisguei-me para bem longe. Passado quase um ano, quando já pensava tudo esquecido, fui à feira de Santarém. Por ali andava desocupado, bebendo um copo aqui, outro acolá, a ver o gado e as gentes. Mas o diabo tece-as e quando já tava meio torcido, pra meu azar, dei de trombas com um dos irmãos da catraia. Ainda tentei esquivá-lo mas já não havia remédio, ali estava ele a fitar-me, tão carrancudo que logo adivinhei molho. E eu não podia fugir, que eu nunca fui homem de fugir de ninguém. Estava como um cão com o rabo entalado. Ele não esteve com demoras, sem dizer água vai, alçou o pau que tinha na mão e estendeu-mo pelo costado abaixo. Ia gritar de dor mas logo outra paulada me estendeu ao comprido ali no meio daquele povo todo. Senti tal raiva que logo a bebedeira me passou. Nunca ninguém me fizera uma humilhação daquelas. Ele ia continuar a malhar-me mas não lhe dei tempo. Ergui-me dum salto, qu’eu era leve como uma pena, e nem sei como aconteceu. Encontrei-me com a navalha na mão e o adversário a gemer aos meus pés, esfaqueado. O povo começou a engrossar e a gritar. Olhei aquela muralha ameaçadora e o medo apertou-me a garganta. Baixei a cabeça, a navalha bem firme na mão, e investi de olhos fechados. Raspei-me como um raio. Ninguém conseguiu deitar-me a unha. Pudera, que a navalha era grande e um homem perdido mete respeito.

O Camarão suava em bica.

- Palavra d’honra que eu gostava da rapariga.

Havia sempre alguém disposto a pagar uma rodada e bebíamos mais um copo para esquecer.

Vieram outros tempos. Para mim e para Portugal. Eu parti para a tropa, para Angola. Depois, apanhou-me a febre de correr mundo : Porto, Lisboa, Paris. E um dia aconteceu o 25 de Abril apanhou-nos a todos desprevenidos. Foi um enorme caldeirão que pôs o país a ferver.

Corriam esses tempos sobrenaturais quando reencontei o ti Camarão.
Estava acabrunhado, muito diferente do homem que eu conhecera.

- Como você está, homem ! Vamos ali ao Américo beber um copo.

E já na taverna : - Américo, encha aqui o copo ao ti Camarão que ele está precisado. Mas que raio se passa, homem ?

O Camarão levou o copo aos lábios, com uma careta.

- Sabe, camarada, agora esta cabeça, depois de velha, deu-lhe para desatar a pensar. Coisas destes tempos que correm.

- Pensar no quê, homem ?

- Na vida. Há dias tive a beber um copo com o Frederico, esse rapaz que anda a estudar pra advogado e sabe o que ele me disse ?

- Políticas, aposto.

- Se são políticas, não sei. O que sei é que foram coisas muito acertadas.

- Desenbuche.

- Disse-me que eu passei a vida a lutar contra mim mesmo.

Larguei a rir.

- Não ria, camarada. Isto é sério. Ele disse-me que passei a vida a malhar nos gajos da minha classe. Para os outros, aqueles que me deram uma vida de cão, que nunca me deixaram ir à escola, nunca levantei um dedo. Nesses é que eu devia ter malhado. É trite, camarada, depois de velho chegar à conclusão que fui uma merda na vida. E o mais triste é ouvir estas verdades da boca dum rapazote que podia ser meu neto. Tive vontade de lhe partir os óculos com um murro.

O rosto rosado do Américo intrometeu-se nos pensamentos do ti Camarão.

- Outra rodada ?

- Encha lá. Valha-nos a pinga. Mas digo-lhe, camarada, se tivesse menos dez anos ía pensar a sério nas palavras do rapaz e eu não me chamasse Camarão se não esmagasse pelo menos uma boa dúzia desses parasitas. - E a mão caiu como um maço sobre o mármore do balcão, fazendo saltar oos copos.

Mas como ninguém pode deter a marcha irreversível do tempo, e já era tarde para arrepiar caminho, continuámos a beber copo atrás de copo até que o ti Camarão recuperou as suas boas cores e acabou por esquecer as palavras do fedelho do Frederico que não tinha mais nada que fazer senão andar para ali a desassossegar as pessoas. Ai dele se por ali aparecesse nessa tarde !


Manuel Carvalho
paula@total.net

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